Recente
decisão da 5ª Turma do e. STJ, de Relatoria do Min. Marco Aurélio
Bellize, em sede do HC n.º 294.078 – SP, considera mera irregularidade,
a desafiar sanção administrativa, a posse de
arma de fogo registrada originariamente, mas com seu registro no
SINARM vencido, desconfigurando a situação em tela do
tipo penal descrito no art. 12 da Lei n.º 10.826/2003.
Em
apertado resumo, a decisão sustenta que é necessário
aplicar uma interpretação racional e funcional da
Lei n.º 10.826/03, sob o viés do princípio
da intervenção mínima do direito penal,
atenta às noções sistemáticas de
tipicidade, é dizer: que os tipos penais possuem
valoração, elementos normativos, havendo de se
considerar o tipo penal também como indiciário de
ilicitude (ratio cognoscendi) ou mesmo em sua acepção
mais ampla como ratio essendi da antijuridicidade (veja-se as
clássicas lições de Max Ernest Mayer e de
Mezger). Assim considerando, na lição do Min. Marco
Aurélio Bellize, a própria norma penal do art 12 da lei
em comento exigiria à configuração do delito
penal de posse ilegal de arma de arma de fogo que não basta a
mera descrição objetiva da conduta para que se
configure a tipicidade desta, mas que a conduta possa implicar, ao
menos indiciariamente, em antijuridicidade (tipicidade material),
quer dizer, que a conduta “atinja de forma socialmente relevante o
bem jurídico tutelado pela norma incriminadora”. Havendo
prévio registro, em que pese vencido, permite ao Estado o
controle sobre o armamento, logo a conduta de quem mantém a
arma sob sua posse, perfectibiliza a tipicidade formal (descrição
técnica do delito), mas não a tipicidade material
(efetiva relevância da ação penal não
mundo jurídico). Haveria, assim, mera irregularidade
administrativa e não o crime do art. 12 da Lei n.º
10.826/03.
Merece
destaque a afirmação constante do r. Acórdão:
Na hipótese,
não vejo como a mera inobservância da exigência de
recadastramento periódico possa conduzir à
estigmatizadora e automática incriminação penal.
Ora, cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição
administrativa pertinente. Agora, deflagrar uma ação
penal para a imposição de pena tão somente
porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma
pelo Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de
tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato, é
fazer com que o Direito Penal esteja a serviço ou da má
administração estatal – que permitiu a continuidade
da posse por anos mesmo sem a regularização do registro
– ou da burocracia – a qual exige com uma periodicidade absurda e
desnecessária (no máximo em 3 anos - art. 5º, §
2º, da Lei n. 10.826/2003) que o cidadão arque com os
custos da revalidação.
Segue
Ementa do decisum:
HABEAS
CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO
PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO
CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL.
RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME
EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO
LEGAL. 2. ART. 12 DA LEI N. 10.826/2003. POSSE DE ARMA DE FOGO
DE USO PERMITIDO COM O REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE MATERIAL DA
CONDUTA. SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL. PUNIÇÃO
ADMINISTRATIVA QUE SE MOSTRA SUFICIENTE. 3. ORDEM NÃO
CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.
1.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,
buscando a racionalidade do ordenamento jurídico e a
funcionalidade do sistema recursal, vinha se firmando, mais
recentemente, no sentido de ser imperiosa a restrição
do cabimento do remédio constitucional às hipóteses
previstas na Constituição Federal e no Código de
Processo Penal. Nessa linha de evolução hermenêutica,
o Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir habeas
corpus que tenha por objetivo substituir o recurso ordinariamente
cabível para a espécie. Precedentes. Contudo, devem ser
analisadas as questões suscitadas na inicial no intuito de
verificar a existência de constrangimento ilegal evidente – a
ser sanado mediante a concessão de habeas corpus de
ofício –, evitando-se prejuízos à ampla defesa
e ao devido processo legal.
2.
O trancamento de ação penal na via estreita do writ
configura medida de exceção, somente cabível nas
hipóteses em que se demonstrar, à luz da evidência,
a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou
outras situações comprováveis de plano,
suficientes ao prematuro encerramento da persecução
penal. Na espécie, o paciente foi denunciado pela suposta
prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003,
por possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre
38, número QK 591720, além de dezoito cartuchos de
munição do mesmo calibre.
3.
Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar a
esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível
tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido
registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua
residência – de forma que o Poder Público tinha
completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo
rastreá-lo se necessário –, inexiste ofensividade na
conduta. A mera inobservância da exigência de
recadastramento periódico não pode conduzir à
estigmatizadora e automática incriminação penal.
Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição
administrativa pertinente, não estando em consonância
com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal
para a imposição de pena tão somente porque o
indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo
Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de tempos
em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até
mesmo por questões de política criminal, não há
como submeter o paciente às agruras de uma condenação
penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade
relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n.
10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na
via administrativa.
4.
Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido, de
ofício, para extinguir a Ação Penal n.
0008206-42.2013.8.26.0068 movida em desfavor do paciente, ante a
evidente falta de justa causa. (STJ. 5ª Turma. HC n.º
294.078 – SP. Rel. Min. Marco Aurélio Bellize. Julgado em
26.08.2014)