É possível acompanhar nas redes sociais, inúmeras manifestações criticando o Juiz que teria ouvido os, hoje tardiamente sabidos, pedidos de socorro do menino Bernardo. Fácil, e por muitos até de certa forma prazeroso, assistir o Ministério Público e o Judiciário verem-se enredados em argumentos e desculpas por terem cometido um erro de juízo que pode ter contribuído para o assassinato do garoto. Em tempos de Páscoa, parece adequado malhar apenas, e tão somente, o juiz. Mas a todos nós que fazemos parte da chamada rede de proteção a criança (profissionais da saúde pública, professores, assistentes sociais, psicólogos, conselheiros tutelares, promotores e juízes, entre tantos outros) cabe fazer, nesse momento, um mea-culpa, digno dos que colocam a retidão de caráter acima dos linchamentos coletivos. Todos nós, sem distinção, assassinamos Bernardos diariamente nesse país.
Cada vez que presenciamos e toleramos que crianças sejam tratadas por suas famílias com total desamor, desafeto, desapego e descaso, matamos um inocente. Crianças criadas a margem da dignidade. Algumas, desde tenra idade aprendem que precisam escalar o fogão e se alimentar do que sobre o mesmo se encontra, pois nenhum adulto da casa se prestará a alimentá-las. Seres indefesos que já na vida intra uterina foram fadados a negligência e ao desamor de seus pais, e que continuarão por toda vida a receber o total descaso e conivência de nós, dignos e bem intencionados profissionais da rede de proteção a infância.
Cada vez que nós, os estudados, desculpamos a negligência dos pais com nossas tradicionais desculpas esfarrapadas de que a situação de desleixo e abandono se dá única e exclusivamente pelas condições socioeconômicas desfavoráveis ou pela tal “cultura” da família, nós asfixiamos uma criança nesse país.
Cada vez que nos posicionamos no sentido de dar mais uma chance à família, aos laços sanguíneos e afetivos, em detrimento da dignidade, do respeito e do verdadeiro bem estar dessas crianças, matamos mais um Bernardo. Sem qualquer remorso ou culpa.
Afinal, é da cultura “deles” tratarem seus filhos assim. E cultura, é o que dizemos, deve ser respeitada. Enquanto isso, inúmeras crianças são emocional e psicologicamente aniquiladas todos os dias. Por nós! Nós que somos omissos e coniventes com a sutil, mas não menos nociva, violência e vilipêndio diário da negligência e do desafeto. É revoltante quando uma criança é literalmente morta por uma família de bom poder aquisitivo. Isso nos enoja, mas estamos acostumados a diariamente sermos coniventes com o constante assassinato da infância e da saúde afetiva e psicológica de crianças de baixa renda e nível social.
Matamos Bernardos todo dia com nossa contemplativa conivência e omissão, seja com crianças pobres, seja com as nascidas em famílias economicamente bem estruturadas. Transformamos crianças negligenciadas e não amadas em adultos igualmente negligentes com seus filhos e que perpetuarão eternamente o ciclo de desafeto, desamor, descaso e abuso.
Assassinamos infâncias em prol de nossos conceitos teóricos de estudados e doutores. Corrompemos futuros.
Mas nossos crimes não fedem tanto, afinal, sempre primamos pelo fortalecimento dos vínculos familiares e afetivos e pelo respeito ao tal “padrão cultural” dessas famílias. Assim como, embasado nos mesmos propalados e difundidos conceitos, primou o Juiz desse caso. Mesmo que estes vínculos só existam em nossos livros de teoria ou em nossas fantasias românticas. Pena que nossos livros e teorias pouca serventia tenham a todos os inúmeros Bernardos que matamos diariamente no Brasil.
Que os Bernardos desse país possam, um dia, nos perdoar por nossa conivente omissão. Enquanto isso, espiamos nossos pecados malhando somente o juiz que decretou na prática a aplicação de nossos teóricos e humanistas conceitos.
Alguém tem de pagar por nossos erros. Ninguém melhor que um juiz.
Kátia Filgueras. Médica.